O Conto de um Livro Sem Capa - Jéssica Banstarch
- Jéssica Banstarch
- 1 de abr. de 2019
- 9 min de leitura

O Conto de Um Livro Sem Capa
Desde a semana em que completou 9 anos, Melissa passou a ser cuidada por ela mesma, durante as tardes depois da escola. Negociou com sua mãe uma mesada, já que o gasto com a babá Ana não seria mais preciso.
- O suficiente para comprar livros novos toda semana. Fechado?
- Tudo bem mocinha... – Concordou sua mãe, a senhora Hellen, uma professora bela e corajosa.
De baixa estatura como todos em sua pequena família, a mulher era sempre vista a caminho de algum compromisso, com sua inseparável pasta em mãos, cabelos compridos soltos e quase sempre desarrumados.
Melissa passava as tardes lendo, o que era motivo de muito orgulho para sua mãe, pois desde muito pequena imitava a leitura da mãe balbuciando palavras irreconhecíveis, foleando livros. Também cozinhava, ou melhor, preparava receitas frias. Sorvetes. Já que a regra imposta pela mãe era que só com 10 anos ela seria ensinada a usar o fogão, com restrições.
- Não insista Mel, falta pouco. Já você poderá usar o fogão.
- Você promete?
- Claro.
E arrumando o cabelo de Melissa, sempre desarrumado como o dela, terminou de tomar o café, pegou as chaves e dando um beijo na filha, que já estava entretida lendo, partiu para a escola.
Depois de muita bagunça na bancada alta da cozinha, metade do freezer cheio de sacolés de variados sabores, a menina apreciou o resultado de todo trabalho que fizera durante a tarde:
- Mel, você é a rainha dos sacolés! Isso é uma obra prima!
Pegou alguns de seus quitutes, colocou na sua vasilha rosa e foi para o tapete da sala ler seu livro novo, As Viagens de Guliver.
A sala não tinha uma enorme televisão, na verdade, se parecia com uma biblioteca e sala de estudos, porque realmente era para isso que a sala servia. Lá a Senhora Hellen estudava em seu laptop, preparava aulas para a semana toda e ajudava a filha nos deveres que Melissa fingia não entender, só para ter o prazer de ouvir mais a voz da mãe.
- Melissa é uma menina muito criativa sabe?
Dizia a senhora Hellen aos seus colegas de trabalho quando o assunto era sobre filhos.
E realmente era assim, aos 5 anos Melissa aprendeu suas primeiras palavras em inglês, e deu um baita susto em sua mãe, ao ligar para ela com o telefone da “Tia Ana”, no meio do expediente dizendo coisas aleatórias como, caneta, amor, mamãe e te amo. Mensagem recebida com muito sucesso e orgulho.
Agora com 9 anos completos, Melissa tinha uma lista de livros lidos, e uma lista maior ainda dos que pretendia ler. Nunca se interessou pela biblioteca da mãe, ela sempre quis a própria. Apesar que nem todos os livros ali eram de fato da senhora Hellen. Grande parte do acervo pessoal, fora arrematado em um leilão de livros na faculdade onde estudou. O professor favorito de Hellen tinha falecido, e em seu escritório, no primeiro corredor a esquerda do prédio verde musgo onde eram ministradas as aulas de Artes, ficaram mais de 500 livros.
Em um dia muito tedioso, Melissa resolveu pela primeira vez, ler um dos livros da biblioteca da mãe. Ela procurava por algum livro de receitas em busca de algo inédito que pudesse virar sorvete.
Goethe, Flaubert, Kafka, Tolstói. Melissa conhecia esses autores, mas era muito nova para compreendê-los. Foi quando passando os dedos pelos livros classificados como “capas apagadas”, encontrou um livro sem capa, com páginas coladas, e ...
- Isso é cheiro de brigadeiro? Você deve estar com baixa glicemia. Todo mundo sabe que não pode comer perto dos livros...
E foleando as páginas percebeu que se tratava de um livro de receitas. Satisfeita pelo tesouro encontrado, sentou-se no tapete e começou a ler em voz alta a receita do “Brigadeiro Especial”
1 colher de manteiga
2 colheres de chocolate em pó
1 lata de leite condensado
Instruções: Somente se você puder usar o fogão, separe uma panela média, colher de pau, avental e cuidado com o fogo.
Coloque tudo na panela e mecha com calma, e por favor não suje toda a cozinha menina!
Tudo na culinária é feito com amor, então tome cuidado para não queimar o fundo da panela.
Foi quando Melissa começou a sentir um cheiro de brigadeiro queimado, coisa que acontecia com frequência quando sua mãe cozinhava conversando com sua amiga no telefone.
- É inacreditável como os livros podem influenciar nossas sensações. Eu poderia jurar de mindinho que tem brigadeiro sendo feito na cozinha.
E continuando a leitura um aviso:
Menina! Você já queimou! Sinceramente não me peça mais nenhuma receita.
Fim! Pode fechar o livro agora.
Instintivamente ela o fez, com certa estranheza e ainda sentindo um cheiro forte de queimado. Deixando o livro fechado no tapete, se levantou e decidiu ir à cozinha conferir, mesmo sabendo que era impossível um Brigadeiro Especial se preparar sozinho. E para sua surpresa, lá estava: o balcão com muito chocolate em pó, uma colher suja de manteiga em cima da pia e uma panela com um conteúdo todo preto dentro, e ...
- Ai meu Deus, o fogão!
A regra do fogão fora desrespeitada, e a sujeira tomava toda a pequena cozinha da casa. Momentos antes da senhora Hellen voltar do trabalho, Melissa faxinou a cozinha para esconder a provas do crime que não cometera.
No dia seguinte, Melissa nem prestara atenção nas aulas e só pensava em ler mais do livro de receitas, e assim o fez quando chegou em casa, antes mesmo de tirar o uniforme ou almoçar. Deitou no tapete da sala, abriu o livro lentamente com receio que algo ali despertasse e lhe desse mais uma bronca pelo brigadeiro queimado que ela ainda não soube explicar como acontecera. Foleou umas páginas coladas, e as separou com cuidado, e lá estava escrito:
Com este livro não se brinca, cuidado e atenção. Não o perca, nem se perca, não se distraia.
- Quanta bobagem! Onde estão as receitas?
Foi quando uma enorme borboleta azul passou por cima de sua cabeça e posou em cima dos papeis na mesa da sua mãe. Melissa a seguiu com os olhos enquanto a borboleta passeava pelos cantos da sala e posava novamente na ponta de um livro na estante onde lá ficou por muitos minutos. Voltando a atenção para o livro, a frase anteriormente lida não estava mais ali, e em seu lugar uma imagem de uma floresta linda, que preenchiam as duas páginas com simetria. Melissa observou outras borboletas, flores e plantas azuis,
todas em harmonia com a floresta, a menina não percebeu quando a sala se transformou na imagem que via no livro, nada da paisagem antiga estava em seu campo de visão, nem o livro.
- Que magia é essa? Onde é que eu vim parar? Onde está o livro?
Todas as perguntas se dissiparam quando olhando para si Melissa viu que estava com um vestido azul que não era dela, um par de sapatos pretos e muito brilhantes, que agora rumavam o caminho que seguia para um rio, e na margem havia um barco, pequeno para um adulto, que não estava preso a nada. Chegando mais perto Melissa viu que no assoalho do barco estavam sua mochila de escola, e o livro sem capa. Quando começou a andar em direção ao barco, ele zarpou. Rápido demais para um barco de remos. Melissa correu o mais rápido que pôde pela margem do rio, tropeçou, e tentando não perder o barco de vista não viu um galho imenso a sua frente.
Ficou desacordada por uns instantes, e o barco se foi. Entrou em desespero, pois não tinha ideia de como foi parar ali, e nem como voltaria para a casa. Sentada ao pé da arvore, chorando e desejando nunca mais ler nenhum livro, um barulho de folhas chamou sua atenção. Muitas folhas que estavam caídas no chão se remexeram e uma delas se elevou no ar, e Melissa a pegou na mão. Olhando bem de perto era possível ler uma frase na folha murcha:
Caminho Especial
- Como alguém conseguiria escrever algo em uma folha sem a rasgar?
Apanhou mais uma folha.
Primeiro passo: Levante-se
- São instruções!
Apanhou mais uma dúzia de folha e foi seguindo o que diziam. Levantou se, limpou as mãos no vestido, olhou para o rio, e seguiu pelo que pareceram horas em sua margem. Encontrou uma casinha de madeira como a instrução da quinta folha dizia. Não parecia que a casa era habitada, e com relutância a menina leu a sexta folha. Ela já presumia a instrução:
Entre na casa, siga para os fundos.
- Os fundos? Eu sei chegar até a parte de trás da casa sem entrar nela. Olha para isso! Está caindo aos pedaços!
A casa parecia ter sido construída às pressas por alguém com nenhuma habilidade em marcenaria. E descartando a folha, leu a próxima:
Entre na casa. Menina burra.
- Mas quanta audácia!
Melissa entrou na casa, passou por várias portas fechadas no corredor estreito, e em cada porta havia uma letra: C; O; R; R; A. Só quando já estava na parte de trás da casa, que juntou as letras em sua mente e se aterrorizou. Uma grande sombra em forma de gato preenchia todo o quintal a sua frente. Sem coragem de olhar para trás, correu como se fosse uma atleta, saltou pelos troncos que surgiam no caminho, e entrando novamente na floresta percebeu o quanto estava longe do rio e seu percurso. Não havia mais o que fazer, seja lá onde estava, Melissa estava presa ali e não poderia voltar enquanto não encontrasse o livro.
Triste e cansada, Melissa se encostou na arvore mais próxima e deixou que seu corpo escorregasse até o chão, rasgando boa parte do vestido. E ali adormeceu.
Despertou quando uma borboleta azul posou na ponta de seu nariz, depois a espantou. Melissa pôde ouvir o rio pouco mais ao sul, com rapidez seguiu o barulho das águas e lá estava o barco preso aos galhos de uma arvore a margem do rio. Alcançando o livro, que estava molhado pelo balanço das águas, Melissa tentou ler alguma coisa que a levasse para a casa. A tinta da impressão estava borrada, e era impossível reconhecer qualquer coisa um dia ali escrito.
Melissa, uma menina muito criativa e curiosa, imaginou o que poderia estar escrito ali, não foi muito fácil se concentrar numa leitura imaginaria com toda a maluquice que a cercava. Começou a ler em voz alta, o que gostaria que estivesse escrito no livro.
- E então, depois de se dar muito mal, Melissa encontrou o bendito livro, que não poderia estar de outra forma, molhado! Que ironia do destino, deixar com que sua leitora entrasse tanto assim na história, e não deixar nenhuma paginazinha com um fim onde tudo volta ao normal. Eu na minha casa, quer dizer, Melissa em sua casa, com roupas confortáveis, fazendo seu dever de matemática esperando sua mãe chegar do trabalho.
Assim que parou para respirar, as palavras ditas por elas começaram a aparecer na página aberta do livro.
- Que incrível! Quer dizer, Melissa se alegrou ao ver suas palavras no livro.
Quando Melissa percebeu que poderia escrever sua própria história em seu livro especial, logo tratou de dar um belo fim a essa experiência.
- Grata por estar inteirinha, apesar de alguns machucados e um belo galo na testa, a menina encontrou uma porta branca a sua esquerda, sem nenhuma sustentação e entre aberta, no que parecia o fim da floresta, uma clareira. Melissa poderia atravessar a porta sem nenhum empecilho e chegar em casa.
Atravessando a porta, de sua casa ainda com medo de tudo dar errado e ela estar na floresta ainda se apressou em dizer:
- E chegamos ao fim dessa aventura, onde Melissa, pode terminar o ... onde Melissa, pode finalmente fechar o livro e descansar por que seu dever de matemática já está pronto. E isso é uma obra ficcional sem semelhança com realidade. Fim.
Fechando rapidamente o livro, Melissa se jogou no tapete e o agarrou com as unhas, e de olhos fechados, torcendo para que sua realidade não fosse desfeita com o fim da leitura, quando ouviu o carro de sua mãe estacionando.
- Mel, cheguei filha. – disse a senhora Hellen entrando pela porta com um gatinho no colo, era um presente para a filha.
- Oi mãe, tudo bem? Você não sabe o quanto senti sua falta. O que é isso?
E sorridente a mãe esticou os braços aproximando o gatinho da filha, que se afastou dando dois passos para trás.
- Qual é o problema? Achei que você adoraria ter um bichinho de estimação filha...
- Ah, sabe o que é mãe, eu prefiro cachorros.
Sorrindo sem graça, ainda com medo da sombra de um gato enorme que vira na floresta, olhou ao seu redor, sentando no tapete procurando com os olhos o livro sem capa. Porém ele havia sumido, e em seu lugar na estante havia um desenho pintado por ela mesma, de uma floresta com flores e borboletas azuis. Olhou para si mesma, procurando o vestido que vestia, mas estava com seu uniforme, um pouco sujo demais, e infelizmente não estava usando os belos sapatos pretos brilhantes. Tudo voltou a ser como era antes, e Melissa nunca mais viu o livro sem capa, e quando sua mãe arrumou outra dona para o gatinho, ela voltou a dormir mais aliviada.
Quando finalmente completou 10 anos, sua mãe lhe dera um livro de receitas, um caderno onde ela poderia escrever as próprias e enfim a menina pode usar o fogão. Ela ficou grata por nada de estranho acontecer enquanto lia seu livro de receitas. Pelo menos não dessa vez.
Não se sabe por qual estante ou prateleira o livro poderá aparecer...
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